sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Morte e Desinformação...

Skull :: Van Gogh (Paris 1887/88)



[...] Sabes
que morres todo o tempo
no ensaiar errado
que vai a cada instante
desensinando a morte
quanto mais a soletras,
sem que nascido, mores
onde, vivendo, morres.
[...]

Carlos Drummond de Andrade

 

O crítico literário Otto Maria Carpeaux, fazendo observações sobre a obra de Drummond, diz em uma passagem de sua História da Literatura que grande parte da poesia drummondiana não é construída em imagens, mas sim em conceitos. O fato é que, longe de ser uma poética imagética, que prima pelas imagens e seus significados, a poesia de Drummmond é construída sob a égide de grandes pilastras de ideias, questionamentos, filosofia e muito pensamento. Não que ela abandone a primeira, mas é fato que há uma afinidade dessa poesia com a verve filosófica de expressão, se assim posso dizer.

Para perceber tal fato não é necessário ir muito longe. Na vasta obra drummondiana, são inúmeras as “peças literárias” que compõem grandes indagações, recheadas de conceitos e elucubrações sobre os homens e suas peculiares e singulares existências.

No livro A falta que ama, Carlos Drummond de Andrade se debruça sobre temas que lhe foram bastante caros, como a precariedade da existência, a busca pelo amor, pelo sonho e pela vida. Como não podia deixar de ser, não faltaram em suas linhas reflexões pujantes, recheadas de conceitos e ideias sobre essa vasta temática.

Para tentar observar um pouco do que ali estava, vou deixar aqui um poema do qual eu gosto muito. Como toda grande peça literária, esse belo e instigante poema faz pensar sobre uma série de coisas. Acho que por meio da leitura crítica e pessoal, cada um pode tirar as suas conclusões... Só digo que, para mim, esse poema nasce a partir de uma dada tensão, que no fim não deixa de se mostrar como uma grande fusão. Aliás, desde o título, já se percebe uma espécie de bipolaridade que responde por um questionamento do eu poético em relação ao mundo e, sobretudo, em relação a si mesmo. Seria Tu? Ou seria Eu? No fim, penso que pode ser nós todos.

Pensando em temas de cunho pessimistas e, por que nao, niilistas no que tange às ideias, nessas linhas frias é possível ver nada mais que a verdade subjetiva do eu poético, a qual emerge de uma reflexão muito singular, irônica e angustiante.

Há a presença de um eu lírico discorrendo sobre a insatisfação em relação à vida, trazendo à tona, em tons gris, a grande questão da existência humana. Afinal, pergunta o eu lírico: que motivos a vida nos dá para a existência do ser humano? O fato é que está tudo trocado: ao invés de viver de modo pleno a sua própria existência, é a vida que vive o homem. Assim, ele é, nessa perspectiva, um ser passivo que não vive de fato.

A vida vence o homem em luta desigual. A questão é que, além de este morrer derrotado, ferrado mesmo, o homem morre sem informações acerca da sentença de “tua morte, lida antes de ser redigida”. Ou seja, antes de você nascer, já há uma sentença pronta (mesmo sem ter sido, concretamente, escrita ou devidamente estruturada e formulada). O tu (que não deixa de ser, em última instância, eu, você e todos nós) já está sentenciado à morte: é, em suma, o não viver; é o deixar a vida irracional te viver

Nesse mundo louco, para não dizer que não houve qualquer chance de defesa contra as adversidades existenciais, dão para esse “tu” um defensor totalmente inábil: um defensor que ora metia medo, ora extorquia amor (veja que até o amor, quando surge no poema, surge de modo estranho e negativo).  Sinteticamente, o homem está aí pelo mundo sempre a morrer no ensaiar errado... é o ato de morrer sem estar de fato morto: é, na verdade, o total desespero atuando na vida dos homens no grande palco da existência humana -- digo isso trazendo à cena algumas ideias de um filósofo dinamarquês do qual gosto muito: Kierkegaard. 

Sören Kierkegaard diz, em O Desespero Humano, que o desespero nasce quando “morremos em vida a morte de fato”. É, se assim posso dizer, o ato de facear e viver a morte sem estar morto fisicamente... 

Ah... sei lá, viu... lendo as linhas de Drummond, eu não consigo me furtar a essas muitas passagens filosóficas... Como diz um amigo, “o negócio é tenso”... é o tenso bom... A tensão que nos faz pensar e refletir.

Bom, eu vou parar por aqui... Fiquem com o poema e vejam se o eu lírico está ou não com a razão...

No fim, ao que parece, todos nós morremos desinformados...  Não podemos conhecer mesmo muita coisa e tudo em nosso mundinho é muuuito efêmero... que o diga a caverinha de Van Gogh (sim, ele foi muito mais do que um pintor de céus estrelados e vibrantes ciprestes)...

Skull with burning cigarrete :: Van Gogh (Antuérpia, 1885/86)

Tu? Eu?

Não morres satisfeito.
A vida te viveu
sem que vivesses nela.
E não te convenceu
nem deu motivo
para haver o ser vivo.

A vida te venceu
em luta desigual.
Era todo o passado
presente presidente
na polpa do futuro
acuando-te no beco.
Se morres derrotado,
não morres conformado.


Nem morres informado
dos termos da sentença
de tua morte, lida
antes de redigida.
Deram-te um defensor
cego surdo estrangeiro
que ora metia medo
ora extorquia amor.

Skull  :: Van Gogh (Paris, 1887-1888)




Nem sabes se és culpado
de não ter culpa. Sabes
que morres todo o tempo
no ensaiar errado
que vai a cada instante
desensinando a morte
quanto mais a soletras,
sem que nascido, mores
onde, vivendo, morres.


Não morres satisfeito
de trocar tua morte
por outra mais (?) perfeita.
Não aceitas teu fim
como aceitaste os muitos
fins em volta de ti.


Testemunhaste a morte
no privilégio de ouro
de a sentires em vida
através de um aquário.
Eras tu que morrias
nesse, naquela; e vias
teu ser evaporado
fugir à percepção.
Estranho vivo, ausente
na suposta consciência
de imperador cativo.



Foste morrendo só
como sobremorrente
no lodoso telhado
(era prêmio, castigo?)
de onde a vista captava
o que era abraço e não
durava ou se perdia
em guerra de extermínio,
horror de lado a lado.


E tudo foi a caça
veloz fugindo ao tiro
e o tiro se perdendo
em outra caça ou planta
ou barro, arame, gruta.
E a procura do tiro
e do atirador
(nem sequer tinha mãos),
a procura, a procura
da razão da procura.

Não morres satisfeito,
morres desinformado.

Carlos Drummond de Andrade 
(In: A falta que ama, 1968)

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