sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Hora Absurda de Fernando Pessoa...


É preciso destruir o propósito de todas as pontes,
           Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras,
           Endireitar à força a curva dos horizontes,
           E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...

           Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã --- como
         nos desalegra!...
           Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem
           O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...
   Fernando Pessoa, Hora Absurda

 
Para aqueles que não entendem o porquê do nome deste pequeno espaço, deixo esta preciosa poesia do grande Fernando Pessoa para que possam conhecê-la. 

Se eu pudesse eleger a poesia que mais toca o meu ser, eu não hesitaria em apontar esta peça literária. Embora eu ame outras inúmeras poesias, essa do "Nando" tem algo que me faz parar e repensar (sempre) uma série de coisas. Ela sempre se renova, se atualiza e acaba por descortinar reflexões em momentos ímpares - desde que a conheci, há esse movimento (que é meu, que é dela - que pertence à gênese do objeto artístico). Às vezes, o processo é compreensível. Outras vezes, é somente estranho... Chega a ser meio absurdo - e talvez por esse tom diáfano, por essa porção de irracionalidade brilhar em um mar dotado de tantas razões, eu a tenha tão em conta... Às vezes, ela me lembra um adagio... Em outras horas, ela simplesmente me mostra a face de um eu irônico discorrendo às avessas sobre o mundo e uma espécie de alteridade... E ela é tantas outras coisas - dependendo tão-somente do jeito do nosso olhar.

A arte tem um poder epifânico nas vidas das pessoas. Ela desbrava caminhos e chega a lugares que outros elementos não conseguem transpor e, assim, revela por meios misteriosos todo um universo que muitas vezes julgamos não existir... E Hora Absurda tem esse poder na minha existência, assim como uma obra de van Gogh, uma sonata de Beethoven, uma passagem de Rilke, um adagio de Mozart, um poema de Drummond, uma reflexão de Lispector, uma frase poética de Hölderlin, uma verso filosófico de Augusto e tantas outras passagens, frases e pensamentos de tantas grandes pessoas...  

Antes de passar para a poesia em si, um detalhe: esse poema não foi criado por nenhum heterônimo. Aludindo à edição de O Eu Profundo e Outros Eus, penso que posso dizer – até que me corrijam – que essa é uma poesia do âmago do eu de profundis do mestre Pessoa.

Eis a versão original portuguesa (com toda aquela pontuação que nos é estranha  nos dias de hoje)... De qualquer modo, apreciem-na...

FERNANDO
PESSOA

           HORA ABSURDA

                                      
           O TEU SILÊNCIO é uma nau com tôdas as velas pandas...
           Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...
           E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
           Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraiso...

           Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte...
           O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...
           Minha idéia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e
           entanto
           Tu és a tela irreal em que erro em côr a minha arte...

           Abre tôdas as portas e que o vento varra a idéia
           Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões...
           Minha alma é uma caverna enchida p'la maré cheia,
           E a minha idéia de te sonhar uma caravana de histriões...

           Chove ouro baço, mas não no lá-fora...É em mim...Sou a Hora,
           E a Hora é de assombros e tôda ela escombros dela...
           Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...
           No meu céu interior nunca houve uma única estrela...

           Hoje o céu é pesado como a idéia de nunca chegar a um pôrto...
           A chuva miúda é vazia...A Hora sabe a ter sido...
           Não haver qualquer coisa como leitos para as naus!...Absorto
           Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...

           Tôdas as minhas horas são feitas de jaspe negro,
           Minhas ânsias tôdas talhadas num mármore que não há,
           Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,
           E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...

           Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos caminhos...
           Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas...
           Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas...
           E a erva cresceu nas vias férreas com viços daninhos...

           Ah, como esta hora é velha!... E tôdas as naus partiram!
           Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam
           De longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram
           Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...

           O palácio está em ruínas... Dói ver no parque o abandono
           Da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada
           E sente saudade de si ante aquêle lugar-outono...
           Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...

           A doida partiu todos os candelabros glabros,
           Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas...
           E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos
           candelabros...
           E que querem ao lago aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?...

           Por que me aflijo e me enfermo?...Deitam-se nuas ao luar
           Tôdas as ninfas... Veio o sol e já tinham partido...
           O teu silêncio que me embala é a idéia de naufragar,
           E a idéia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...

           Já não há caudas de pavões tôdas olhos nos jardins de outrora...
           As próprias sombras estão mais tristes...Ainda
           Há rastros de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora
           Um como que eco de passos pela alamêda que eis finda...

           Todos os ocasos fundiram-se na minha alma...
           As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios...
           Secou em teu olhar a idéia de te julgares calma,
           E eu ver isso em ti é um pôrto sem navios...

           Ergueram-se a um tempo todos os remos...pelo ouro das searas
           Passou uma saudade de não serem o mar...Em frente
           Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras...
           Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...

           Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol!
           Tôdas as princesas sentiram o seio oprimido...
           Da última janela do castelo só um girassol
           Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido...

           Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!...
           Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?...
           Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula...
           Por que não há de ser o Norte e Sul?... O que está descoberto?...

           E eu deliro... De repente pauso no que penso...Fito-te...
           E o teu silêncio é uma cegueira minha...Fito-te e sonho...
           Há coisas rubras e cobras no modo como medito-te,
           E a tua idéia sabe à lembrança de um sabor de medonho...

           Para que não ter por ti desprêzo? Por que não perdê-lo?...
           Ah, deixa que eu te ignore...O teu silêncio é um leque ---
           Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,
           Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...

           Gelaram tôdas as mãos cruzadas sôbre todos os peitos....
           Murcharam mais flôres do que as que havia no jardim...
           O meu amar-te é uma catedral de silêncio eleitos,
           E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...

           Alguém vai entrar pela porta...Sente-se o ar sorrir...
           Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem...
           Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há de vir,
           O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...

           É preciso destruir o propósito de tôdas as pontes,
           Vestir de alheamento as paisagens de tôdas as terras,
           Endireitar à fôrça a curva dos horizontes,
           E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...

           Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...
           Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã --- como
           nos desalegra!...
           Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem
           O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...

           Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce...
           Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito...
           A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,
           E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a meu peito...

           Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...
           Ah, se fôssemos as duas côres de uma bandeira de glória!...
           Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia batismal,
           Pendão de vencidos tendo escrito ao centro êste lema ---  Vitória!

           O que é que me tortura?... Se até a tua face calma
           Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...
           Não sei...Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...
           Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...

                                                                           4-7-1913
     

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