domingo, 8 de maio de 2011

Abdicações e Escolhas

Uma grande cadeia de escolhas, eis aí a nossa parca vida...


Se pegarmos qualquer bom dicionário, a fim de buscar o entendimento sobre a palavra abdicar, veremos que este vocábulo, tão simples, encerra um significado bastante interessante. Dentre tanta coisa, nesse momento é importante apenas salientar que Abdicar está ligado à renúncia. Assim, abdicar é, dentre tantas ideias, renunciar... É a renúncia de algo que muitas vezes nem sabemos o que é.

Indo um pouco mais além, desmembrando a palavra, vemos que abdicar é formada por um prefixo (ab), que traz em si a ideia de afastamento, de separação. Dicar, por sua vez, está ligada à palavra latina dicare, cuja ideia é a de dedicação, tributação e, até mesmo, de sacrifício.

Pensando na ideia de renúncia, pensando no desmembramento vocabular que traz a ideia de se afastar de algo a que poderíamos nos dedicar; de não dedicação; de não se sacrificar por algo e trazendo isso para mais próximo da vida prática, me pergunto: a que nos abdicamos dia após dia? A que renunciamos? O que queremos? O que deixamos para trás? A que devemos abdicar para viver realmente? Quais sacrifícios não valem a pena? Quais valem a tinta de uma caneta? Quais ações valem o nosso pensar? Quais valem a exposição de ideias? Quais abdicações, afinal, valem o nosso agir? 

Não sei por que, mas algumas destas questões povoaram minha mente hoje...
Pensando nelas, veio-me à cabeça uma grande reflexão, lida há um bom tempo, mas que até hoje ecoa em mim, como se tivesse sido descoberta hoje, agora.

Sartre, em um pequeno grande texto, denominado O existencialismo é um humanismo, chama atenção para algo que é bastante importante, algo a que não damos atenção na nossa caminhada frenética pelo mundo: a escolha.

A vida que temos é, certamente, a nossa maior escolha. O que somos, o que deixamos de ser, o que podíamos ser, o que iremos ser... o mundo que criamos, o mundo em que vivemos, tudo parece ser fruto de uma personalíssima escolha. São as nossas abdicações. São as nossas renúncias. São as nossas vontades transmutadas em atos... É a nossa existência transmutada em mera escolha -- feita, muitas vezes, irrefletidamente...

Não conseguirei, com toda a certeza, dar resposta segura aos meus questionamentos, mas acredito que é necessário ter em mente a importância de tudo aquilo que fazemos e até mesmo daquilo que deixamos de fazer. Um ato, por mais simples que seja, gera algo. Mesmo a não atuação implica um agir. E esse algo, esse não agir, essa atuação estranha e paradoxal, aquela ação praticada cotidianamente ou mesmo a falta dela gera outras coisas...

O interessante, no mundo, é que muitas vezes não nos damos conta de como certas coisas começaram, como as coisas chegaram a um ponto determinado ou por que razão ainda não atingiram aquilo que queríamos. O que penso é que nossas benditas abdicações, nossas escolhas estão de modo muito tênue ligadas a tudo que queremos, temos, somos, fomos e que vamos ser. Uma grande cadeia de escolhas, eis aí a nossa parca vida... Escolhas refletidas, malfeitas, bem-feitas; escolhas randômicas, escolhas impensadas, ao vento, ao belo luar...: sempre nossas filhas ditosas.

Para fechar o post (paradoxalmente inconcluso, uma vez que essas são indagações que me perseguirão por toda a vida), deixo um poema que sempre surge quando penso nas tais abdicações existenciais. Eis o Nando (Pessoa) e sempre sua contribuição para um pensar mais agudo acerca da vida, da arte, da filosofia... em suma, sobre nossas frugais e ao mesmo tempo tão interessantes existências...

Que saibamos despir integralmente a realeza citada pelo eu lírico
e, assim, regressar, em vida, a esse lugar, a essa noite bela, 
notável por sua calmaria e antiguidade. 



Abdicação

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho.
Eu sou um rei que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.

Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mão viris e calmas entreguei;
E meu cetro e coroa — eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços

Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.

Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.
(Fernando Pessoa, In: Cancioneiro)