domingo, 16 de outubro de 2011

Imperfeito...


Às vezes, paras e olhas o mundo e o todo ao redor... e seu desejo é de que tudo não estivesse ali.
Há pressões por todos os lados, e a sensação é de pequenez diante da imensidão.
Pensas em ficar. Em seguida, refletes e desejas se recolher tão somente à sua pequenez.  Depois, pensas em ir adiante, fazendo planos de mudar o mundo, mas o muito que podes fazer é mudar uma ínfima parte de ti... o que é sempre perigoso e dificultoso, dizem alguns....
O mundo não desvanece diante de ti quando desejas.
As coisas não voltam para um plano-ponto perfeito no tempo-espaço além (muito além) do aqui...
Aquele que foi, aquilo que foi, tudo passado, tudo que gostarias, mas não sabes, tudo não volta.
O mundo, um belo palco estranho, marca tua face e teu corpo o tempo todo... Piores são as indeléveis marcas em tua alma e coração. E em vez de estar acostumada, depois de tantos deslizes, tombos e caminhos errados, ainda deixas que aquela lágrima teimosa, impávida e tão orgulhosa tombe devagar com outros fiéis seguidores... Todos transeuntes escuros e perdidos em seu rosto inerte...
Pensas em tantas coisas... A muitos, parece (até) fazer algo... Mas sentes o vazio do mundo na alma e no coração...
Sentas e deténs a si mesma, somente para escutar a melodia do mundo... Mas a desarmonia fere teus ouvidos...
Vês o mundo lá fora, e todo ele, estranho e roto, fere tuas pupilas dilatadas, pobres meninas apaixonadas por coisas que aqui não existem...
Abres o mapa terrível, e lá escrito está que tu estás tão além deste mundo, terra insana... Nietzsche falaria em montanhas, e tu pensas tão somente em abismos...
Como ser em um mundo hermético como o que vives?
Como respeitar a natureza de peixe afeito à liberdade preso em um grande aquário... Presa da racionalidade idealizada, conjunção de uma noite de dezembro, chuvosa.
Tenha sido uma noite feliz, desejas... Tenha sido uma noite de amor-amor...
Tenha sido um dia feliz, com o sol a raiar ao longe, enchendo o cálice da frieza do mundo...

Que dia é este?, perguntas...
Que época é esta...?
E brota o 16 de outubro...
Disseste há pouco que seria um tempo de mudança... Que tempo é este?
Que mundo é este?


domingo, 2 de outubro de 2011

Manuel Bandeira :: Paisagem Noturna

Paisagem Noturna


A sombra imensa, a noite infinita enche o vale . . .
E lá do fundo vem a voz
Humilde e lamentosa
Dos pássaros da treva. Em nós,
— Em noss'alma criminosa,
O pavor se insinua . . .
Um carneiro bale.
Ouvem-se pios funerais.
Um como grande e doloroso arquejo
Corta a amplidão que a amplidão continua . . .
E cadentes, metálicos, pontuais,
Os tanoeiros do brejo,
— Os vigias da noite silenciosa,
Malham nos aguaçais.

Pouco a pouco, porém, a muralha de treva
Vai perdendo a espessura, e em breve se adelgaça
Como um diáfano crepe, atrás do qual se eleva
A sombria massa
Das serranias.

O plenilúnio via romper . . . Já da penumbra
Lentamente reslumbra
A paisagem de grandes árvores dormentes.
E cambiantes sutis, tonalidades fugidias,
Tintas deliqüescentes
Mancham para o levante as nuvens langorosas.

Enfim, cheia, serena, pura,
Como uma hóstia de luz erguida no horizonte,
Fazendo levantar a fronte
Dos poetas e das almas amorosas,
Dissipando o temor nas consciências medrosas
E frustrando a emboscada a espiar na noite escura,
— A Lua
Assoma à crista da montanha.
Em sua luz se banha
A solidão cheia de vozes que segredam . . .

Em voluptuoso espreguiçar de forma nua
As névoas enveredam
No vale. São como alvas, longas charpas
Suspensas no ar ao longe das escarpas.
Lembram os rebanhos de carneiros
Quando,
Fugindo ao sol a pino,
Buscam oitões, adros hospitaleiros
E lá quedam tranqüilos ruminando . . .
Assim a névoa azul paira sonhando . . .
As estrelas sorriem de escutar
As baladas atrozes
Dos sapos.

E o luar úmido . . . fino . . .
Amávico . . . tutelar . . .
Anima e transfigura a solidão cheia de vozes . . .

Manuel Bandeira

domingo, 21 de agosto de 2011

Simplesmente Miró

Miró, Poetess (1940)

Miró, Tilled Field


“Contemporâneo do fauvismo e do cubismo, Miró criou sua própria linguagem artística e procurou retratar a natureza como o faria o homem primitivo ou uma criança, que tivesse, no entanto, a inteligência de um homem maduro do Século 20.”
Enciclopédia Britânica

Figur gegen Rote Sonne II

Desde que trouxe van Gogh para aqui passear, eu pensava em trazer um pouco de Miró ao Horas Absurdas. Confesso, desde já, que meu conhecimento sobre esse grande mestre das artes plásticas é muito estreito e, por isso até, desejo dilatar a minha visão nesse sentido.
Há uns 5 anos que conheço Miró. O mais legal é que tive a feliz oportunidade de ver um pouco de seu trabalho quando morei em Curitiba -- e aquela experiência foi superimportante para que eu me tornasse ainda mais sua fã (bem como de van Gogh, Monet, Picasso e outros tantos que conferi ao vivo). Lembro-me de que foi por acaso que divisei seus traços na Internet. Estava, se não me engano, procurando uma imagem e encontrei algo que lembrou o Snoopy (a famosa Figur gegen Rote Sonne II). Desde então, me apaixonei por esse pintor.

Nesse blog, há não muito tempo, eu trouxe pequenas gotas de van Gogh e agora chegou a vez de um pouco desse pintor tido como um mestre intuitivo e iconoclasta (mais um para a vasta coleção do grande e belo mundo das Artes). 

Miró, La Leçon de Ski
Ao folhear livros de História da Arte, não é difícil nos deparar com as interessantes pinturas e desenhos do grande Miró. Em sua obra, está presente a destruição de valores estéticos tradicionais em prol de uma fecunda transmutação. São signos, traços, caracteres que se metamorfoseavam em meios de expressão metafórica que revelavam ao mundo uma proposta estética diferente. Naqueles belos traços, transcendentalidade, poesia e belos absurdos  se encontravam para erigir algo visceral, que, para muitos, mostrava uma consciente afinidade com os dadaístas e os surrealistas.
Com o fim de apresentar um pouco mais de informações sobre esse grande mestre, deixo parte de um texto com algumas informações sobre Joan Miró. 

Nascido em Barcelona, no dia 20 de abril de 1893, Joan Miró i Ferrà foi mais um daqueles que queria viver a arte, mas foi obrigado a frequentar cursos que não lhe agradavam. Assim, quando jovem, frequentou uma escola comercial e trabalhou num escritório por dois anos até sofrer um esgotamento nervoso. Depois de perceber o que de fato Miró queria para si, em 1912, seus pais finalmente consentiram que ele ingressasse numa escola de arte em sua cidade natal.
Joan Miró, então, estudou com Francisco Galí, que o apresentou às escolas de arte moderna de Paris, transmitiu-lhe sua paixão pelos afrescos de influência bizantina das igrejas da Catalunha e o introduziu à fantástica arquitetura de Antonio Gaudí. 
De 1915 a 1919, Miró trabalhou em Montroig, próximo a Barcelona, e em Maiorca, onde pintou paisagens, retratos e nus. Depois, viveu em Montroig e Paris alternadamente. De 1925 a 1928, influenciado pelo dadaísmo, pelo surrealismo e principalmente por Paul Klee, pintou cenas oníricas e paisagens imaginárias. Após uma viagem aos Países Baixos, onde estudou a pintura dos realistas do século XVII, os elementos figurativos ressurgiram em suas obras.
Na década de 1930, seus horizontes artísticos se ampliaram. Fez cenários para balés, e seus quadros passaram a ser expostos regularmente em galerias francesas e americanas. As tapeçarias que realizou em 1934 despertaram seu interesse pela arte monumental e mural. Estava em Paris no fim da década, quando eclodiu a guerra civil espanhola, cujos horrores influenciaram sua produção artística desse período.
No início da segunda guerra mundial voltou à Espanha e pintou a célebre "Constelações", que simboliza a evocação de todo o poder criativo dos elementos e do cosmos para enfrentar as forças anônimas da corrupção política e social causadora da miséria e da guerra.
A partir de 1948, Miró mais uma vez dividiu seu tempo entre a Espanha e Paris. Nesse ano iniciou uma série de trabalhos de intenso conteúdo poético, cujos temas são variações sobre a mulher, o pássaro e a estrela. Algumas obras revelam grande espontaneidade, enquanto em outras se percebe a técnica altamente elaborada, e esse contraste também aparece em suas esculturas.
Miró tornou-se mundialmente famoso e expôs seus trabalhos, inclusive ilustrações feitas para livros, em vários países.
Em 1954, ganhou o prêmio de gravura da Bienal de Veneza e, quatro anos mais tarde, o mural que realizou para o edifício da UNESCO em Paris ganhou o Prêmio Internacional da Fundação Guggenheim. Em 1963, o Museu Nacional de Arte Moderna de Paris realizou uma exposição de toda a sua obra. 
Joan Miró morreu em Palma de Maiorca, Espanha, em 25 de dezembro de 1983.
©Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.
Farm (1921)












         

domingo, 14 de agosto de 2011

Dexter Morgan: eu, você e todos nós

Refletir sobre a figura do herói na arte ocidental é algo bastante curioso. Quem é o herói? Como é esculpida essa personagem que tanto fascínio exerce nos fruidores da arte? Será ele sempre o bonzinho da estória? Será que ele, classicamente, ainda permeia os livros, os filmes, os seriados por aí? Será que heróis caminham entre nós hodiernamente? Acho que não. Por isso, melhor do que insistir nessas questões da pureza do herói é tentar perscrutar as frestas por onde a natureza multifacetada e cindida da personagem passou para chegar ao seu ponto atual... Que caracteres ambíguos e múltiplos que nos erigem dia a dia serviram para erigir a natureza ontológica de nossas personagens?
Sim, não temos tão somente mocinhos por aí. Muito pelo contrário. Nossa natureza paradoxal constrói seres, muitas vezes, deformados e que, não raro, nem percebem sua própria fragilidade. Nós, convenhamos, somos assim – embora dificilmente admitamos. Admitir, aliás, a nossa natureza plural e muitas vezes contraditória para o mundo é algo que não fazemos de forma alguma. Se para o mundo não admitimos o que somos, será que o fazemos, ao menos, para nós mesmos?
Penso que cada pessoa tem seu próprio modo de exorcizar seus demônios (seja trancafiando-os ainda mais com a santa água do esquecimento ou estendendo o longo tapete sobre a sujeira; ou, também, liberando-os, para trancafiá-los depois ainda mais). Há, ainda e com toda a certeza, outras formas de lidar com nossos diabinhos interiores, mas meu objetivo não é entrar nessa questão. Mais do que saber o que fazemos com nosso demo, pergunto acerca do diálogo com seu passageiro sombrio... A conversa assaz com aquele ser sombrio que aí dentro de ti mora, você trava?
Há pessoas que por certo diriam que nem conhecem esse ser sombrio. O meu, confesso, ele conversa comigo não raro... E são sempre conversas esclarecedoras, mas nem por isso menos pertubadoras – por essa razão é melhor deixar em off  -- por ora, pelo menos.
O fato é que, se até a autora do post insiste em não falar sobre seus próprios demos em público e se realmente a maioria de nós não tem a liberdade de falar sobre seu passageiro particular (que são muitos, aliás), é salutar fazer o papel de voyeur e nos deleitar com alguns seres ficcionais que trazem toda a sua carga emocional à superfície das telas, dos papéis, do cinema e mesmo da TV. Penso que o mais interessante de fazer o papel do observador nessa hora é a permissão para a catarse engendrada por personagens complexas que nos suscitam olhares agudos que dilatam a nossa parca percepção epistemológica acerca do mundo e de nós mesmos ao mesmo tempo.
Há um ser que faz (e muito interessantemente) essa travessia sobre a ponte do diálogo com seu “dark passenger” para tentar entender melhor qual a matéria-prima responsável por sua construção. Ele tenta de um modo ímpar entender do que é feito. Percebe suas falhas e, nos embates que trava com suas arestas, constrói uma existência bastante peculiar.
Sim, estou pensando em pura ficção. Estou pensando na grande personagem chamada Dexter Morgan, e minha pergunta é who is Dexter Morgan?
Há muito tempo, na era das Letras, fiz um breve estudo sobre O Lobo da Estepe, de Hermann Hesse. E aquilo que o lobo Heller diz acerca de si mesmo, sobre sua multiplicidade, é bem o que poderíamos aplicar a Dexter Morgan – embora pensemos nele dicotomicamente quase que todo tempo. Não se tem apenas um Dexter Morgan ou dois ruivinhos (ou ruivões!). Dexter é múltiplo; ele é cindido e isso se dá dia a dia, desde o dia em que sua figura ficcional criou vida na literatura e, depois, muito magistralmente foi às telas da TV.
Dexter Morgan, de dia, é um especialista em sangue, que trabalha no Departamento de Polícia de Miami. Lá, ele procura ser um sujeito tranquilo, pacífico, sempre pronto a ajudar àqueles que dele precisam. É importante atentar para o fato de que Dexter, ali, está sempre pronto também a tentar livrar a sua cara ou os seus rastros, “limpar a sua ficha” ou mexer na dos outros, ou, ainda, fazer pesquisas mais apuradas para conseguir pistas a respeito de suas vítimas, seus elementos, em última instância, catárticos.
Normalmente, é à noite que Dexter Morgan abre espaço para que seu “dark passenger” ilumine o seu caminho e sacie a sua fome. Iluminar? (podem perguntar). Sim, iluminar. Pois já notaram que quando ele não consegue dar vazão ao seu passageiro sua vida fica sem sentido, in the darkness?  A noite é o momento em que Dexter abre as portas para a sua própria luz... É o momento em que ele se alimenta da corrupção dos outros para transcender a sua própria natureza. É dando vazão a seu sombrio lado que ele se alimenta e consegue ver de forma plena a luz do dia. Seu Dark Passenger é um vingador... Um passageiro que, seguindo um Código Moral, mata apenas aqueles que afetam à sociedade. Mas há sempre o questionamento sobre o ato de matar. Há sempre o questionamento ontológico. Há sempre a dúvida por trás do telos erigido ao longo da sua vida, via The Code, via seu pai adotivo. E agora (dizem os novos trailers), com a nova temporada, a sexta, virá a dúvida teológica.
 Com seus muitos enganos e seus sentimentos disfarçados, Dexter Morgan, por toda a sua fragilidade (muito bem explorada na quarta e quinta temporadas da série), se mostra mais do que nunca um humano. Sua natureza é humana e, mais do que isso, seus sentimentos são reais -- ainda que potencializados de forma brutal pelas eloquentes cisões abertas no dia em que nasceu para a morte mergulhado no sangue de sua mãe. Foi no dia do brutal assassinato de sua genitora, pensa ele, que sua natureza cheia de ambiguidades, cheia de desejos e dúvidas emergiu. No entanto, ainda que seja deveras singular esse nascimento, Dexter é, no fim, um irmão nosso... mais um ditoso, mais um maldito, como todos os outros embebidos no sangue desse belo e estranho mundo.
É interessante observar como a natureza desse ruivo se forja; como se dão as suas descobertas acerca de sua vida e da dos outros personagens. A narração da série, muitas vezes em primeira pessoa, nos permite conhecer em muitos momentos a forma como Dexter vê o mundo. Nessas horas, muito de nossa própria natureza se descortina diante de nós. Logo em seguida, somos convidados a ver como se dão suas ações; observamos quais são as suas reações e as ações dos outros personagens – e mais do grande espelho do mundo se interpõe diante de nós.
No início do seriado, deparamo-nos com a forma como Dexter constrói a sua “natureza de fachada” para ser uma pessoa mais sociável e jamais ser pego (como sugere seu pai adotivo). O interessante é que, ao longo do seriado, vamos percebendo Dexter dar por si que, ao invés de uma pessoa insensível e fria (como seu pai tentara colocar na sua cabeça), ele tem, sim, sentimentos. E tudo isso foi sendo construído sem ele nem ao menos perceber. É perturbador, belo, instigante, curioso ver esse processo todo.
Dexter, além de ser um convite para ver um belo ruivo na tela, é uma incitação à reflexão sobre a natureza humana de forma especular -- isso porque nessa série vemos muitos dos tortos fragmentos da humanidade; e neles enxergamos partes singulares de nós mesmos... Um pouco do herói e do vilão que todos nós somos está ali também.
Diante do turbilhão de ideias que me impele a escrever e me diz, ao mesmo tempo, que isso não vai dar certo, pois eu deveria honrar melhor a série que eu mais aprecio na vida, me vem à cabeça aquele célebre aforismo de Nietzsche: “E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti”. Penso que é isso: Dexter é mais um grande  abismo... Um abismo que nos traz, paradoxalmente, ao fundo de nossa superfície, de nossa rota e estranha superfície profunda. Profundidades singulares que nos levam a lugares que não queremos conhecer -- e nem queremos acreditar que existem.
Vale muito a pena ver essa série. Eu sou aficcionada por muitas, mas com toda a certeza Dexter é a minha preferida. Os atores são fantásticos – que o diga o grande Michael C. Hall, ganhador de vários prêmios, entre eles o Globo de Ouro, o Emmy e o SAG Awards de melhor ator em drama, pela interpretação em Dexter (e, também, em outra série fantástica). Vale o adendo aqui para citar essa outra série: a primeira vez que vi o ruivão atuando foi na ótima Six feet under (A sete palmos). Fica a dica, aliás, para quem quiser assistir a mais uma série muito boa. Esse rapazinho (meu sonho ruivo) é um dos melhores atores que eu já vi – sem sombra de dúvidas.
:: Dexter :: FX (canal 47) e acho que Rede TV também.
Vale muito a pena!
Quanto a Six feet under, o SBT a exibia há bons anos... Mas, acho que agora... dá-lhe Torrent!

Bons diálogos com seu Dark Passenger!

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Um pouco de Estética da Recepção e Grande Sertão: Veredas :: (I)

           

Uma obra regionalista, a priori, trata de algo localizado; seu lócus é determinado e ela possui os elementos da narrativa – personagens, trama, conflitos – normalmente atrelados ao espaço em que é realizada discursivamente a ação.
Estruturar linguisticamente um discurso literário a partir de um lugar determinado pode trazer certa complexidade. Isto porque, embora não tenha a obrigação de ser uma fotografia e registrar todos os aspectos do mundo sensível, uma representação que foca determinado local necessita de uma carga de verossimilhança para que a obra não fique artificial. É necessário encontrar nessa mímese os elementos que justificam a obra ser caracterizada como regionalista.
            Contudo, a dificuldade que pode surgir em uma obra localizada pode ser controlada se a representação conseguir transmitir a essência do local, mesmo que aspectos pontuais, como a linguagem corrente e suas variantes, não estejam presentes. Tal fato ocorre, por exemplo, com o escritor Hugo de Carvalho Ramos[1], que em seus contos consegue absorver a alma do lócus o qual representa, a partir da representação de um lugar determinado através de uma linguagem formal sem, no entanto, prejudicar a sua literatura. Outro modo de evitar dificuldades diz respeito à estruturação de uma obra regionalista cuja mímese capta, através de uma aguda imagética, a essência do local e do ambiente, e apresenta a linguagem característica do local no discurso literário ao qual se propõe. Pensando nessas duas formas, não é difícil perceber em qual desses modos o romance de Guimarães Rosa se encaixa.
Grande Sertão: Veredas é uma obra peculiar que apresenta como cenário o sertão de um modo universalizado. O local presente na narrativa de Riobaldo é transcendido para refletir as características do homem universal. Além de possuir um enredo bastante peculiar, dotado de uma trama vívida e de conflitos que representam o âmago dos relacionamentos humanos, a língua portuguesa, afinada com a poética rosiana, aparece altamente potencializada na obra de Guimarães Rosa, causando um estranhamento ao leitor que não tem conhecimento do modus operandi desse tipo de escrita.
O sertão, singularmente exposto em todo o seu paradoxal lirismo e brutalidade, por conta da linguagem e da imagética ali manifestada, compõe um cenário bruto e bucólico, no qual se desenrola uma narrativa de tom lírico e épico que exprime o ethos ambíguo do homem. O fato é que Grande Sertão: Veredas possui latente em si características que mescladas não raro causam estranheza àqueles que tomam contato com a obra.
Alfredo Bosi, ao caracterizar o romance de Guimarães Rosa, estabelece que Grande Sertão: Veredas é um romance de tensão transfigurada. Ou seja, nesse tipo de narrativa, o herói procura ultrapassar o conflito que o constitui existencialmente pela transmutação mítica ou metafísica da realidade[2]. O conflito, assim “resolvido”, força os limites do gênero romance e toca a poesia e a tragédia, algo que, muitas vezes, os leitores não estão acostumados a ver. O interessante dessa dificuldade, que engloba tanto essa transmutação mítica ou metafísica do mundo sensível quanto a poética de Rosa e suas características lexicais, é que ela, em si, diz respeito a algo positivo; porém, tal fato só será assimilado posteriormente.
             Ao fazer uso de uma linguagem viva e prenhe de significados, Guimarães Rosa consegue impactar a recepção do leitor, fazendo com que haja um estranhamento que de nenhum modo é visto como algo negativo. O estranhamento que vai ao encontro do leitor nasce a partir dos paradigmas da poética rosiana; é uma condição e característica desta. Os recursos utilizados na construção do texto são os elementos responsáveis por esse efeito que pega de surpresa o leitor que não conhece o modus operandis da linguagem ali utilizada. O fato é que o leitor não acostumado com esse tipo de escrita é levado a conhecer um modo diferente de concepção da linguagem, por isso é difícil no primeiro momento apreender o que está sendo exposto na narração.
Singular, Grande Sertão: Veredas é uma obra que causa em nós, indubitavelmente, uma sensação de desconforto, porque mexe com nosso modo de perceber o mundo. O novo tem o poder de causar em nós um certo espanto[3]; espanto este que advém de nossa ignorância e de nosso desconhecimento. Contudo, à medida que a narração de Riobaldo avança e que a nossa leitura se dá, o desconhecimento que nos leva a reavaliar a nossa percepção vai dando lugar ao desvelamento. Assim, o que era até então pleno desconhecimento de nomes, lugares, fatos e personagens dá lugar a possibilidades de compreensão, visto que, a partir do preenchimento de lacunas, conseguimos, pouco a pouco, elaborar formas de entendimento sobre o que está sendo narrado.
É interessante observar que as obras modernas não mostram o seu significado de forma pura e transparente; até porque esse significado, dessa forma, não existe. Na verdade, pensar em único significado é errôneo, porque as obras, essencialmente, nos oferecem sempre significados. E para que eles sejam possíveis, para que possam ser concretizados e vislumbrados, é necessário que o leitor interaja com a obra a qual se propõe a conhecer.
Em Fundamentos da Estética do Efeito, Karl Erik Schollhammer[4] diz que o texto literário se realiza na “convergência do texto e da imaginação”. O objeto estético, nessa perspectiva, é nada mais do que uma construção dotada de dinamismo e realizada por uma lúdica joint-venture entre texto e leitor. O texto literário é caracterizado por uma incompletude e a literatura se dá de fato a partir da leitura. Nesse sentido, o texto instrui e o leitor constrói. E é bem isso o que ocorre com Grande Sertão: Veredas à medida que a narração vai sendo conduzida. Em um primeiro momento, a sucessão de acontecimentos, de nomes de lugares, de personagens e de conflitos, dá-nos a sensação de total desconhecimento. Além disso, há muitas passagens em que o entendimento se dá por conta da objetividade, no entanto, logo a seguir, você tem a incerteza sobre o que foi “conhecido” visto que em um momento de subjetividade e de reflexão a personagem, Riobaldo no caso, ou diz que aquilo não tem fundamento ou muda de assunto, como se o que fora dito não tivesse tanta importância. Contudo, é com as idas e vindas, com o grande número de fatos expostos e com o desenvolvimento do discurso do Tatarana que o leitor vai conseguindo estruturar seu entendimento, juntando as informações umas às outras até conseguir elaborar uma compreensão da obra que não é, de forma alguma, imutável.  Para essa compreensão ocorrer, é necessário que o leitor entre em contato com a obra, reconheça-a e vá completando-a a partir de conexões que ele estabelece entre um vazio e outro. E é a esse processo que o leitor é convidado a participar em Grande Sertão: Veredas para concretizar seu entendimento sobre a obra. Ao estabelecer contato com o romance, tem-se o desconhecimento, a dúvida e a incerteza; pois a narração que ali está não possui a finalidade de comunicar uma verdade dotada de um sentido único e absoluto. Na verdade, é bem o contrário; pois é o leitor, com o seu modo de perceber, com o seu modo de conceber a realidade, quem irá construir as significações da obra. É com o fluir da leitura que o interlocutor começa a reconhecer que algumas passagens se ligam a outras, que determinadas personagens têm certas características e importância, que certos lugares têm determinados significados.
Em A interação do texto com o leitor,[5] Wolfgang Iser diz que o leitor vem com conhecimento textual para preencher os vazios e sair em outro ponto no que tange à significação de sua leitura, e é esse o movimento dinâmico entre texto e leitor que ocorre em Grande Sertão: Veredas enquanto o entendimento vai sendo construído sobre o livro. É com a concretização do texto através da leitura que o leitor entenderá melhor quem é aquele compadre Quelemém que consola Riobaldo e que tão bem sabe falar dos espíritos descarnados. É avançando em sua leitura que o leitor terá percepção sobre quem é o Hermógenes e por que sua personagem está tão ligada à figura do Diabo. Compreenderá por que Diadorim deseja tanto vingar Joca Ramiro e entenderá, a seu modo, o sentimento que unia Reinaldo e Riobaldo. Ou seja, é com o processo da leitura que hipóteses de significações vão sendo levantadas e que o leitor vai conseguindo construir seu entendimento. É dessa forma que as lacunas que até então diziam respeito ao entendimento do leitor começam a ser preenchidas, dando lugar a significados e interpretações.
Em O Ato da Leitura[6], Wolfgang Iser diz que a modernidade se manifesta, sobretudo, como uma negação daquilo que era essencial para a arte clássica. Assim, a harmonia, a conciliação, a superação dos opostos, a contemplação da plenitude dão lugar a outros modos de fazer e perceber a arte. Diante de uma arte nova, que prima pela invenção, pela universalidade e por um novo modelo estético de construção, é natural que o leitor se veja sem respostas a respeito das significações do texto. O interessante, nessa perspectiva, é saber que as significações que faltam ao texto estão presentes no leitor.
O que temos em relação à arte e seu significado é uma multiplicidade de interpretações. A respeito dela não podemos afirmar nada de absoluto, pois a arte nunca dá margem a uma única vereda. E o que acontece no início de Grande Sertão: Veredas, quanto à recepção do leitor, é que aquele que faceia a obra sente a incerteza de não saber se está apreendendo algo, pois a dúvida, de certa forma, é o que rege o romance. Há uma sucessão de acontecimentos envolvendo inúmeros personagens, inúmeras reflexões; histórias, pequenas parábolas, são contadas, mas a sensação que se tem é de que algo importante está escapando da compreensão. Certos fatos são entendidos, por conta da objetividade presente no relato, contudo, logo mais adiante, eis que a subjetividade surge projetando ao mesmo tempo luz e sombra ao discurso. É factual que em um primeiro momento de recepção a sensação de andar por veredas desconhecidas esteja presente. Todavia, mais certo do que isso, é saber que aos poucos o entendimento do que está colocado pelo narrador vai se dando à medida que a leitura ocorre. Os pontos de indeterminação que até então eram inúmeros começam a ser preenchidos e a obra começa a fazer sentido; pois o leitor passa, enfim, a concretizá-la.
Wolgang Iser[7] diz que a obra literária mais eficiente é aquela que força o leitor a uma nova consciência crítica de seus códigos e expectativas habituais. E é exatamente a esse tipo de experiência que a obra de Guimarães Rosa nos convida. Sua estrutura complexa interroga e transforma as nossas crenças com as quais a abordamos, desconfirmando nossos velhos hábitos de percepção, nos forçando a reconhecê-los como eles realmente são. Como diz o teórico da Estética da Recepção, em lugar de simplesmente reforçar as percepções antigas que temos, a obra literária, quando valiosa, violenta e transgride os modos paradigmáticos que temos de ver as coisas e com isso nos mostra novos modos de conceber o mundo, apresentando-nos novos códigos de entendimento.
Valiosa, violenta, transgressora, Grande Sertão: Veredas é, como salienta Alfredo Bosi, um desafio à narração convencional, por isso, para compreendê-la, é necessário repensar as nossas formas de compreensão e nos abrir de uma forma mais plena para a sua recepção. Para fruí-la, é necessário aceitar o convite que nos é feito em suas primeiras linhas. É necessário encarar as ambiguidades e nos deleitar com a fragmentação, com o caos que emerge do discurso que ali está posto. Fica uma dica: só nos desprendendo das nossas pré-noções e preconceitos é que podemos passar conhecer a beleza e a vida presente nas veredas da literatura rosiana e de outros tantos autores ditos modernos – que tanta empáfia causa a leitores impacientes.





[1] RAMOS, Hugo de Carvalho. Tropas e Boiadas (contos). Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1917.
[2] BOSI (1994), p. 392.
[3] Fala-se em espanto nesse ponto pensando na pontuação de Alfredo Bosi, quando este fala do “aparecimento desta obra espantosa que é Grande Sertão: Veredas”.  BOSI (1994), p. 429.
[4] SCHOLLHAMMER, Karl Erich. Fundamentos da estética do efeito: uma leitura. In: João Cezar de Castro Rocha. (Org.). Teoria da Ficção - indagações à obra de Wolfgang Iser. 1 ed. Rio de Janeiro: EdUerj, 1999, v. 1, p. 117-130. 
[5] ISER, Wolfgang. “A interação do texto com o leitor”. In: LIMA, Luiz C. (org.) A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
[6] ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo: Ed. 34, 1996, p.9.
[7] Ibidem, p. 55. 



sábado, 6 de agosto de 2011

Tolerância e Entendimento



Em meados do século XVI, o grande filósofo inglês John Locke escreveu uma carta sobre a tolerância. Seu contexto histórico era outro, sua realidade era diferente da nossa, o Zeitgeist daquele instante tinha características bem distintas do momento que vivemos hoje, mas uma coisa que ali estava presente ainda se mantém nos nossos dias: a natureza humana que, mesmo com a evolução de alguns bons anos, mantém certos caracteres, de certo modo, impassíveis ao longo do tempo.

Nesse ínterim, desde que a genialidade de Locke e de tantas outras figuras trouxe à tona belas e importantes reflexões, é inegável que a humanidade passou por mudanças. Foram transformações em diversos âmbitos. Mudanças culturais, mudanças econômicas, mudanças científicas que transformaram de diversas formas a vida do ser humano – para o bem de uns, para o mal de outros, poderiam dizer. Entretanto, como fora salientado, mesmo com tantos reveses e tantos acontecimentos, ainda divisamos, tal como outrora, certos comportamentos rijos.

Resgatando o tema da tolerância exposto por Locke, acredito que falar sobre essa questão, seja trazendo o contexto do século XVI, seja pensando nas mazelas que ainda vemos na nossa sociedade, é algo sempre atual e pertinente, até porque, ao que parece, a humanidade parece precisar ser recorrentemente relembrada sobre o que é o respeito às diferenças, lembrada acerca desse ente fundamental para a boa convivência em qualquer lugar do globo.

Em Carta acerca da Tolerância, Locke nos mostra uma questão extremamente importante e que, infelizmente, é pouco trabalhada: ninguém impõe a tolerância. O filósofo inglês fala do papel do magistrado e da impossibilidade deste impor através de decretos e lei a aceitação de determinados temas. Preso de certo modo a uma questão bastante importante da sua época – a religião –, o filósofo chama atenção para o fato de que é necessário respeitar as crenças dos outros sem forçar ninguém a partilhar nada sem sua vontade.

A questão fundamental é que pensar em tolerância é trazer ao cerne das reflexões o esclarecimento. E o esclarecimento não é algo que se imputa a alguém através da força ou da lei. A tolerância nasce do entendimento. Ela é um processo racional que envolve, se assim posso dizer, a alteridade. É um processo de se colocar no lugar do outro e entendê-lo. E tal processo não pode advir da imposição.

Em uma passagem que serve bastante para ilustrar o que estou pensando, Locke diz “confisque os bens dos homens, aprisione e torture o seu corpo: tais castigos serão em vão, se se esperar que eles façam mudar seus julgamentos internos acerca das coisas”.  O fato é que a tolerância, o respeito aos outros seres e o esclarecimento não se apresentam de modo algum quando há a presença da força e da irracionalidade. Para existir o respeito, é necessária uma boa dose de esclarecimento. E talvez seja isso que esteja faltando às pessoas quando elas discriminam, humilham, mentem, destratam e ferem outros seres. O que é o bullying nas escolas e em outros tantos recintos e ambientes senão a falta de respeito? O que é o preconceito senão a falta de tolerância àquilo que é diferente? O que é a intolerância religiosa, cultural, pessoal, sexual senão a falta de coragem de se colocar na posição do outro e entender que há, no vasto mundo, outros pontos de vista além do nosso?

As limitações que temos nos impedem de respeitar os outros seres humanos. A ignorância pura e simples nos prende a pequenos mundos egoístas e insensíveis, nos quais muitas vezes vivemos, achando que somos maiores e superiores à grande massa de transeuntes que pensam e sentem de modo diferente de nós mesmos.

Os nossos pré-julgamentos, nossas opiniões infundadas e nossa falta de saber não nos permitem ver o lado do outro – consequentemente, respeitar ideias, outros modos de ver a vida ou distintas formas de lidar com as coisas se torna, para nós, algo impensável e inconcebível. Por toda essa falta de esclarecimento da parte de muitos, por toda essa pequenez e por muito outros aspectos que nos transformam em seres exclusivistas e fechados diante do mundo múltiplo que temos diante de nós, acredito que a falta de esclarecimento é o pior mal que existe em nosso globo.

Voltando a Locke e a suas reflexões, nessa mesma carta vemos que o filósofo inglês chama atenção para o fato de que o esclarecimento, de modo algum, pode advir do sofrimento corpóreo. Indo um pouco mais além, acho interessante pensar (ainda que muito superficialmente) na questão do movimento Iluminista, que era designado pela palavra Aufklärung, que em alemão quer dizer esclarecimento.

O movimento iluminista tinha como postulado a ideia de que era necessário que o homem buscasse conhecer. Era necessário o movimento de sair de si mesmo para conhecer o mundo e as coisas, usando a sua própria razão – e não se sujeitando àquilo que os outros impunham. Pensando sub-repticiamente nessas ideias, creio que, para acender certas luzes nos dias de hoje e ver com maior nitidez as coisas que estão diante de nós, precisamos sair de nossos lugares, abandonar de vez nossas rotas zonas de conforto, fazer certos movimentos e buscar transcender nosso mundo para além de nós mesmos. Uma espécie de epifania ou a tal “iluminação” dos iluministas é algo de que precisamos para crescer.

O fato é que, se quisermos pessoas mais tolerantes, não adianta forçarmos, criarmos leis, criarmos punições. Para termos pessoas mais tolerantes, precisamos de pessoas mais esclarecidas. Talvez, seja necessário desenterrar os princípios dessa Aufklärung e chamar atenção das pessoas de algum modo.

Não basta, nesse sentido, jogar a responsabilidade apenas nos ombros de nossos pais, nossos professores, nossos políticos, nossos ditos amigos ou inimigos. Independente de formação, de classe social, de crença, de valores, todos nós precisamos de mais conhecimento, de mais entendimento (latu sensu). E mais importante: precisamos que todas essas ideias passem do mundo teórico à práxis.

Enquanto caminho para o final dessa reflexão, fico pensando no paradoxo que envolve a questão da intolerância: ao mesmo tempo em que o remédio parece ser tão simples, o tratamento é tão difícil de ser posto em prática. Os motivos para tal, creio, são inúmeros. Todavia, acredito que a mudança, tão desejada por muitos, precisa partir de cada um de nós. Um exemplo é uma semente; é um ato que, depois de plantado, tem em si o potencial de crescimento e multiplicação. Um exemplo tem o poder de influência sobre o agir de uma pessoa, de duas, de uma multidão – basta que tentemos.  A grande questão é começar o quanto antes, e começar onde quer que estejamos. Os pais com seus filhos; os professores com seus alunos; os amigos com seus pares; os políticos com aqueles que neles depositaram confiança, e todos esses, novamente, em situações inversas: em nossa casa, em nosso trabalho, na rua, no trânsito, nas escolas, faculdades, empresas – em todos os nichos, o exemplo com a tolerância e o entendimento amalgamados pode arrebatar multidões.

Posso soar utópica, mas desejo que chegue logo o tempo em que manifestos, boas ideias, palavras, gestos e atitudes em prol de verdadeiras catarses tomem forma e se tornem parte de uma mudança real nas nossas vidas tão ordinárias e falhas...  Que discursos e ideias sobre o esclarecimento e a mudança sejam incorporados à vivência de todos e que o sapere aude resgatado por Kant, no Iluminismo, torne-se uma lei da consciência de cada um, para que as pessoas respeitem e entendam mais todos os outros seres. Que a intolerância seja solapada pelo saber de uma consciência coletiva mais esclarecida – e que sejamos, desde sempre, a verdadeira mudança que queremos no nosso mundo.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

O imperativo penal e outras pequenas reflexões



Em um trabalho de final de semestre, o professor de Sociologia do 1.º período do curso de Direito, da UFG, Cleito Pereira, nos pediu para ler alguns textos e compará-los.
Havia vários textos, e a parte que realmente me interessou foi a que contemplava as reflexões de Nildo Viana, André de Medeiros e do fantástico Loïc Wacquant. Resolvi, depois de a nota ter saído, postar algumas de minhas impressões sobre algumas dessas leituras. A questão é que vejo delinear-se diante de mim o caminho complicadinho que eu quero dentro do Direito. Por essas e outras, posteriormente, com toda a certeza, irei me deter mais nessa relação entre a derrocada de prerrogativas humanistas e sua íntima relação com as crises políticas e econômicas.
Seguem aí algumas reflexões. O assunto é bem mais complexo do que o que se segue, mas acho importante que eu já comece a pensar nisso e a expor algumas coisas desde já.


Quando comparamos os textos de Nildo Viana, “Crise Financeira, Estado e Regulamentação Jurídica”, o de André A. A. de Medeiros, “Estado, Crise Econômica Mundial e a Centralidade do trabalho”, e os dois textos de Loïc Wacquant, “O Avanço do Neoliberalismo” e “Nota aos leitores brasileiros: rumo a uma ditadura sobre os pobres”, percebemos que todos eles tocam (de modos distintos) na questão da crise econômica e no esfacelamento do Welfare State (Estado de Bem-Estar Social). Na verdade, vê-se que há uma grande crise presente (possuidora, aliás, de várias ramificações que atingem várias áreas da sociedade) e, por isso, busca-se apresentar soluções que tentem superá-la de algum modo.
O texto de Nildo Viana, por exemplo, chama atenção para o fato de que a crise financeira que se espalhou por várias áreas é passível de inúmeras explicações: há a questão do aumento da taxa de juros para combater a inflação; a falta de Estado e, em outra ponta, o excesso deste; além disso, alude-se à questão de esta ser apenas mais uma fase dos ciclos econômicos do capitalismo. Contudo, é importante perceber que, para além das explicações apresentadas, há problemas conjunturais e estruturais atuando em uníssono. E, portanto, a solução deve ser pensada de um modo mais profundo. Para tanto, Viana fala que se deve pensar na questão do Direito a partir do desdobramento da evolução do Capitalismo. E nesse ponto podemos fazer uma ponte com algumas reflexões de André de Medeiros.
Em seu texto, Medeiros afirma que a crise econômica e financeira leva a efeitos políticos e sociais. Refletindo sobre o Estado, ele fala do paradoxo do Estado Mínimo, que age na condução da proteção social, e do Estado Forte, que está presente no mercado financeiro e de crédito. É inegável a premência com que o Direito Positivo deve repensar seus modelos e práticas intervencionistas, buscando um maior consenso civilizatório de convivência social, principalmente após o fortalecimento democrático da esfera pública.
Algo que nos faz refletir sobre os outros textos é a alusão ao choque entre os objetivos do Welfare State e os do capitalismo desregulado, algo que, segundo André de Medeiros, levou a uma articulação ambivalente e desigual entre o universalismo protetor, as formas crescentes de particularismo social e a crescente mercantilização da política social. Por conta dessa conjuntura, é mister pensar com maior cuidado nas proteções aos direitos, na questão trabalhista, bem como nos modelos e práticas intervencionistas. Fica patente que é fundamental refletir acerca da criação de um ordenamento jurídico que garanta realmente a segurança das pessoas e percebe-se a urgência que temos de um verdadeiro estado democrático, o qual, invariavelmente, precisa ter como objetivo a socialização da política e do poder.
Medeiros, como se percebe com a leitura de suas reflexões, fala com propriedade acerca do “Paradoxo do Estado Mínimo e Forte”, e quando este fala do último estado, podemos pensar, de imediato, nas ideias pertinentes de Loïc Wacquant.
Em Wacquant, conseguimos perceber que, com a derrocada das premissas de cunho humanista e solidário do Welfare State, temos hoje o Império de um Estado Penal. Como salienta Loïc Wacquant, no lugar de um cuidado maior com os direitos humanos, no lugar de uma maior reflexão e uma mudança prática em relação à questão dos direitos, como é proposto por Nildo Viana e André de Medeiros, temos agressivas práticas policiais e políticas adotadas de modo ostensivo, além da desregulação social e do trabalho precário. Ao invés de se pensar em direitos básicos, tem-se uma “obsessiva” busca por reafirmar o direito à segurança, o qual vem mascarando inúmeras questões.
Fala-se, em jornais, na televisão, na mídia, na rua, em todos os lugares, sobre a necessidade premente de encarcerar, mas não se discute sobre quem está sendo posto nas prisões. Não há reflexões sobre esse “imperativo penal”; até há, mas de modo reverso, para que ele seja cada vez mais solidificado no (in)consciente coletivo. Desse modo, estabelece-se, assim, um Estado Penal, que apresenta em seu bojo políticas afirmativas carcerárias, mas que se esquece, fundamentalmente, de cuidar das estruturas do Estado. Nesse sentido, não se tem mais a preocupação em cuidar da solidariedade e fazer frente aos efeitos prejudiciais advindos das questões econômicas, pois só se vê na prisão o remédio para os males da sociedade.
O recurso a esse tipo de situação, a esse Estado de Prisão, a esse Estado que não respeita o indivíduo aparece em todos esses textos. Há em todos eles a ideia de que é necessário fugir do modelo que temos diante de nós, desenvolvendo, assim, em um e em outro local, formas diferentes de lidar com as crises que faceamos no momento.
Finalizando com Wacquant e sua pertinente reflexão, o que podemos ver é que resolver essa situação se resume em escolha política. É necessário se opor a essa penalização da precariedade social e repensar as bases jurídicas que estamos construindo para nosso futuro. A penalidade neoliberal não consegue resolver as disparidades sociais existentes nos países em que ela é levada a cabo, como acontece no Brasil. Na verdade, ela agrava todos esses problemas e evidencia a questão do preconceito que se queria, por muitos, velado. Portanto, fica aí a crítica de Loïc Wacquant ao Brasil, quando afirma que este não construiu um Estado de Direito digno do nome. É esta, em suma, a recomendação presente em todos os outros textos lidos e que está presente em toda reflexão cujo bom senso é a pedra de toque: antes de achar que cadeia é solução para tudo, é necessário construir um verdadeiro Estado Social em nosso País e repensar as bases que erigem e validam nossos direitos
Há um longo caminho pela frente...

sábado, 2 de julho de 2011

Fragmentos da vidência do jovem Rimbaud...



O Relâmpago
 
O trabalho humano! eis a explosão que ilumina o meu abismo de tempos em tempos.
“Nada é vaidade; rumo à ciência, e avante!” clama o Eclesiastes moderno, ou seja Todo mundo. E contudo os cadáveres dos maus e dos ociosos caem sobre os corações dos outros... Ah! rápido, mais rápido; lá embaixo, além da noite, essas recompensas futuras, eternas... irão escapar-nos?...
– Eu, que posso fazer? Conheço o trabalho; e a ciência é muito lenta. Que a prece galopa e a luz atroa... Bem o vejo. É muito simples; e faz muito calor, passarão bem sem mim. Tenho o meu dever, dele me orgulharei como fazem muitos, pondo-o de lado.
Minha vida está gasta. Mas vamos! flanemos, fantasiemos, ó que lástima! E viveremos a nos divertir, a sonhar amores monstruosos e universos fantásticos, queixando-nos e criticando as aparências do mundo, saltimbanco, mendigo, artista, bandido, – padre! No meu leito de hospital, o odor do incenso retornou poderosamente; guardião dos aromas sagrados, confessor, mártir...
Nisso reconheço a minha infame educação de infância. Que fazer!... Viver meus vinte anos, se os outros também o fazem...
Não! Não! agora eu me revolto contra a morte! O trabalho parece leve demais para o meu orgulho: minha traição ao mundo seria uma tortura curta demais. No derradeiro momento, eu atacaria à direita, à esquerda...
Então, - oh! - pobre alma querida, a eternidade não estaria perdida para nós!

Arthur Rimbaud. Uma Estadia no Inferno (1873).