quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A confissão do homem-lobo moderno: uma leitura do gênero romance, do anti-herói e do narrrador-personagem da modernidade

“Eu, o Lobo da Estepe, vago errante
pelo mundo da neve recoberto;
um corvo sai de uma árvore, adejando,
mas não há corças por aqui, nem lebres!
Vivo ansiando por achar a corça,
ah! Se eu desse com uma!
Tê-la em meus dentes, entre as minhas garras,
nada seria para mim tão belo.
Havia de tratá-la tão cordial,
de cravar-lhe nas ancas os meus dentes,
beber lhe o sangue até a saciedade
a uivar depois na noite solitário.
Contentava-me mesmo com uma lebre!
Na noite sabe bem a carne flácida.
Por que de mim há de afastar-se tudo
quanto faz esta vida mais alegre?
Em minha cauda o pêlo está grisalho
e também já não vejo as coisas nítidas;
há muito morreu a minha esposa
e vivo a errar sonhando corças,
ansiando lebres,
ouço o vento soprar na noite fria
com neve aplaco o fogo da garganta
e levo para o diabo a minha alma.”
(Hesse, 1969. p. 62)



Quando pensamos em épica tradicional, lembramos, não raro, de Homero, com a Ilíada e a Odisséia, esta última a “narrativa primordial” do ocidente, para falarmos com Tzvetan Todorov (1979). Emil Steiger (1969), em seu livro Conceitos fundamentais da poética, afirma que Homero foi o único poeta em que a essência do épico aparecia, até certo ponto, pura. Neste ponto, nos é pertinente perguntar sobre o que seria o gênero épico em si, para prosseguirmos com maior segurança em nossas investigações.
Nosso objetivo com esse pequeno artigo não é de forma alguma entrar nas especificidades do gênero épico, até porque muitos já se detiveram nesse trabalho. Nosso objetivo, na verdade, é pontuar alguns dados importantes para nossa reflexão para depois pensarmos no que se tornou, ao longo do tempo, a épica ou a epopéia em si.
Em linhas gerais e de forma muito sumária, podemos dizer que a épica é um gênero narrativo que prima pelo relato de grandes feitos, obedecendo, dessa forma, certos paradigmas pré-estabelecidos. Uma das características distintivas das obras épicas é o distanciamento mantido pelo narrador, que se mantém inalterável ante o seu objeto, diferentemente do poeta lírico que se apresenta dentro das obras, mostrando com a sua voz lírica o seu parecer acerca das coisas, deixando claro o seu juízo pessoal sobre aquilo que está diante de si sem distanciamento. Percebe-se também no gênero épico um registro de fatos que estão inseridos na sucessão de um determinado tempo e espaço. Dito de outro modo, no âmbito épico tempo e espaço estão delimitados de forma clara, diferentemente da lírica, na qual muitas vezes tempo e espaço fundem-se com as impressões daquele que conduz o discurso.
Ainda pensando nas ideias propostas por Emil Steiger, presentes em seu Conceitos Fundamentais da Poética, percebemos que o que está claro no interior do gênero épico é o ato de esclarecer, mostrar, tornar plástico os fatos narrados; fatos esses que possuem uma espécie de autonomia dentro do texto.
Seguindo as pistas presentes nessas primeiras informações, poderíamos tentar estabelecer uma espécie de ponte que nos ligue à gênese do romance moderno e que nos permita pensar um pouco mais no gênero romance que é, de acordo com Georg Lucáks (2000), “a epopéia do mundo abandonado por Deus”, ou ainda, “a forma da aventura do valor próprio da interioridade”. Na verdade, a pergunta que nos fazemos é como criar essa ponte? Ela é realmente possível?
Thomas Mann (1988), em um ensaio intitulado A arte do romance, estabelece que, no início, o romance era uma degeneração arbitrariamente aventureira da epopéia em verso, mas que, no seu longo caminho de desenvolvimento, trouxe consigo possibilidades, cuja realização, desde os monstros fabulosos dos gregos e dos hindus até a Education Sentimentale e as Afinidades eletivas, nos permitiram considerar a epopéia e a épica como uma pré-forma arcaica do romance.
É interessante observar que o romance, como o conhecemos, surge a partir de um contexto muito singular que envolve mudanças em vários campos, sobretudo, o do pensamento filosófico. Na verdade, a partir do século XVII, percebemos uma mudança sensível na forma como o homem se vê. É a partir desse momento histórico que vemos surgir no âmbito do pensamento e da postura ocidental um foco maior no homem e em sua individualidade. Uma centralização no indivíduo, em certa medida, é estabelecida. O famoso cogito que estabelece um eu que pensa e que existe surge e passa a vigorar no contexto do pensamento. Com o tempo, a revolução copernicana é estabelecida na filosofia com Kant, no século XVIII, trazendo à tona o advento da primazia do olhar do sujeito em detrimento do objeto. É firmado o primado pela subjetividade com foco no indivíduo, em detrimento da vontade de um ser superior, o que acabava por estabelecer de forma muito particular um princípio, para continuarmos com Thomas Mann (1988), denominado de interiorização. Foi essa interiorização, que trazia luzes e foco sobre o interior dos indivíduos, que influenciou sobremaneira a arte e a literatura, sobretudo a partir do século XVIII, possibilitando o surgimento do romance propriamente dito.
Nesse novo gênero, que tem suas raízes na epopéia e na épica, não existe mais a simples demonstração, o simples registro dos fatos narrados, mas, sim, a recriação de um mundo no qual o sublime e o profano coexistem no mesmo espaço; onde o belo e o grotesco se interpenetram num mesmo tempo; onde a loucura e a sanidade, muitas vezes, são e estão, ontologicamente, manifestadas em único Ser, ainda que este, em última instância, seja fictício.  É o personagem dúbio e múltiplo que traz uma caracterização única ao romance moderno. Como este se configura ao longo do romance? Como este se coloca nas narrativas modernas? São perguntas que nos fazem refletir sobre a especificidade desse elemento primordial em uma narrativa. E é sobre esse Ser que habita a linguagem, lembrando aqui o filósofo alemão Martin Heidegger, que tentaremos discutir nas próximas linhas, abordando para tal os protagonistas dos livros Lobo da Estepe, de Hermann Hesse (1969), e Confissões do impostor Felix Krull, de Thomas Mann (2001).
Octavio Paz (1996), no ensaio intitulado A ambigüidade do romance, afirma que o herói épico é um arquétipo, um modelo. Quando falamos em modelo, falamos indubitavelmente em paradigmas a serem seguidos. Nessa perspectiva, se o herói épico era modelar, consequentemente ele era um ideal a ser seguido. E como o romance de certa forma tem um parentesco com o gênero épico, poderíamos pensar que o herói presente no romance poderia ter afinidade com esse ser paradigmático presente nas epopéias antigas. Contudo, não é bem assim que funciona na “epopéia da modernidade”, que é o romance. Diferentemente das grandes epopéias clássicas, o herói do romance moderno, despojado do caráter paradigmático que o herói épico possuía, lança-se ao mundo e nele se forja, dotando-se de todos os contrastes, paradoxos e antíteses que a modernidade e o mundo moderno abarcam em si.
Neste mundo estranho, o herói perde a segurança e passa a viver em um tênue limite, vagando não raro solitário, ainda que mergulhado na multidão, sobre o solo movediço da ambigüidade e da contradição. Impulsionado, consciente e inconscientemente, pelas forças, muitas vezes, irracionais que regem o caótico mundo moderno em que vivemos, o herói da épica perdida forja-se no mundo sob o signo da contradição e, por se mostrar tão volátil no contexto do mundo, ele não é paradigmaticamente clássico para ninguém.
O herói da modernidade, como não podia deixar de ser, é aquele que melhor reflete o homem moderno, esse anti-herói que, angustiado, esfacelado, alternando estados de êxtase, euforia, depressão e tristeza, exprime sua essência incomensurável, problemática e infinita nos finitos e estreitos limites da existência.
Lobo da Estepe, livro do escritor alemão Hermann Hesse, é exemplar para que pensemos nessa ambigüidade do herói/anti-herói, pois esta obra é um importante exemplo de como características díspares podem habitar a essência de uma personagem literária, configurando de forma modelar aquilo que temos como anti-herói no contexto das narrativas.
O protagonista da obra de Hermann Hesse, Harry Haller, costumava-se chamar de Lobo da estepe por “ser um ser estranho, selvagem e, ao mesmo tempo, tímido, muito tímido”. Era, como a personagem mesmo atesta, um sem pátria, “um solitário odiador do mundo burguês”, mas que, contraditoriamente, sempre morava em verdadeiras casas burguesas. Na verdade, essa personagem, Harry Haller, abrigava em si muitos elementos antitéticos e compunha-se essencialmente não de dois, mas de cem, de mil, de essencialmente múltiplos seres. Não eram apenas Harry e o Lobo que estavam presentes na natureza da personagem. Como deixa claro na obra um segundo narrador, desta vez um narrador observador, que fica sabendo da história de Harry através de alguns escritos pessoais e também de uma parca convivência com esse Lobo, “sua vida não oscila simplesmente entre dois pólos, tais como o corpo e o espírito, o santo e o libertino, mas entre mil, entre inumeráveis pólos”; pólos esses que constantemente se movem, num movimento incessante, perturbador e imprevisível.
Imprevisível, o narrador do romance moderno deixa, simplesmente, de obedecer aos paradigmas épicos de distanciamento do objeto ao aproximar-se muito das personagens, chegando, muitas vezes, a fundir, se assim podemos dizer, o próprio narrador na figura ficcional do romance. Esse narrador-protagonista que narra a partir de um ponto fixo, limitado quase que exclusivamente às suas percepções, pensamentos e sentimentos, faz uso de sua Verdade Subjetiva, pensando aqui no conceito de verdade do filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard (1981), que busca refutar a verdade absoluta hegeliana, argumentando que a possibilidade de algo se tornar verdade depende única e exclusivamente daquele que a toma com plena paixão, agarra-a como sua verdade pessoal, uma verdade que, em última instância, transforma a existência do indivíduo que a possui. Ora, não é nada mais do que essa Verdade apaixonadamente subjetiva que vemos em muitos narradores-protagonistas? A partir de suas percepções, esses narradores-personagens nos levam, ou pelo menos tentam, nos fazer acreditar naquilo que eles relatam. Afirmam categoricamente, muitas vezes, que suas histórias são sinceras, como é o caso do narrador-personagem da obra de Thomas Mann, Confissões do impostor Felix Krull.
Confissões do impostor Felix Krull é uma obra que não nega de forma alguma sua modernidade, pois está afinada com a realidade ambígua que nos rodeia e propicia ao leitor, a partir de um peculiar reflexo/reflexão sobre o mundo, uma percepção muito mais dilatada e sensível da sociedade.
Quando falamos em reflexo/reflexão, queremos dizer que a literatura possui um caráter, de certa forma, representativo da realidade, que poderia ser pensado como esse reflexo do mundo; reflexão, pois há, conforme Lucáks nos atesta, um movimento de reflexão no grande e autêntico romance que está inserido num contexto temporal e histórico. O romance de Thomas Mann, em especial, está afinado com essa idéia. Afinal, neste livro, Thomas Mann procurou criar uma visão de mundo anárquica, através das aventuras e desventuras de Felix Krull, personagem problemático, um autêntico anti-herói, que não obedece a nenhuma lei, e que também não propõe nada para melhorar as situações que o oprimem. Na verdade, as Confissões do impostor Felix Krull traçam um vasto perfil crítico da burguesia européia, mostrando que os elementos que ajudam a construir a natureza da personagem de Felix Krull, tais como a ironia, o humor, o sarcasmo e os artifícios presentes no texto, não passam de um hábil e inteligente recurso para induzir o leitor a compreender o vazio, o egoísmo e a alienação de uma classe centrada tão somente em suas necessidades. Para que compreendamos melhor essa idéia, basta lembrarmos-nos que Krull articula um discurso altamente argumentativo, no qual busca convencer o leitor de que suas ações torpes, suas peripécias e artifícios são válidas, que este está sempre “fiel à verdade”. Com certeza, Felix Krull é fiel a uma verdade: “à sua própria verdade”. O interessante é que aquilo que era concebido como verdade, no que diz respeito à antiguidade clássica, e que vigorou durante muito tempo acabou sendo preterido em prol de um conceito mais afinado com o momento presente. Por isso, quando Krull chama atenção para essa verdade que ele está seguindo, o leitor arguto irá desconfiar e se perguntará a que tipo de verdade diz respeito aquele discurso confessional de Krull, irá questionar mais profundamente essa verdade que é narrada e não irá ser ludibriado, pelo menos não tão facilmente, por suas retóricas digressões que buscam, de certa forma, escusá-lo de uma “possível culpa”:

“Sem dúvida vão me censurar, dizendo que o que fiz foi um roubo mesquinho. Diante disso silencio, e afasto-me, pois naturalmente não posso impedir ninguém de usar essa mísera palavra, se isso lhe dá prazer. Mas uma coisa é a palavra - a palavra barata, gasta e superficial - e outra coisa é a ação, viva, original, eternamente jovem, eternamente reluzindo, nova, primeira, incomparável.” (Mann, C.I.F.K. 1981, p.47)

Octávio Paz afirma que o romance é uma épica de uma sociedade em luta consigo mesmo, e reiteramos com ele que o romance é realmente esse embate, essa batalha; e afirmamos ainda que dentro desse embate sem vencedores é que estão as dificuldades, as problemáticas que habitam o cerne das contradições, ambigüidades e tensões, que são, por sua vez, as filhas diletas dessas lutas. São esses frutos, nascidos do embate da sociedade, que se transformam em matéria bruta para a feitura de novos e instigantes romances; e, posteriormente, são eles que levam aqueles que estão dispostos à reflexão, ao importante (e tão escasso) ato da indagação e do questionamento do mundo.
A Literatura, o Romance, a Arte em si, para dizermos de modo mais abrangente, está afinada com a sociedade e suas lutas, seus conflitos, suas dificuldades reveladas, seus grandes paradoxos confessados; afinada em uníssono com o Zeitgeist (espírito de época), e, dessa forma, provoca, muitas vezes, o estranhamento que vem acompanhado do questionamento e da investigação. Nesse sentido, nada é mais natural do que a reflexão da sociedade, o herói/anti-herói reflexo do homem moderno, a visão de mundo, o discurso subjetivo estarem no cerne daquilo que outrora fora épica e hoje, na modernidade (e na pós-modernidade), é romance.
Artigo apresentado à Faculdade de Letras (UFG) - Novembro de 2005.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Tanto



Tantas coisas são...
Tantas se perdem...
Tantas passam e ficam à margem.

À beira do caminho, tantos estão
Margeando, observando com olhos lassos,
Olhos pudicos – eis o medo de enfrentar.

Tantos são os receios
Tantas são aquelas mágoas, que
Deixam sentimentos de naufragar
Em águas rasas que nos afagam
Em águas profundas que nos afogam
Em águas que nos jogam
Para fora do mar e do ar...

Mares revoltos são tantos...
Mares calmos são sem número...
Rios torrentes, rios perenes, rios decadentes
Perdem suas águas em seu caminhar.

Tantos são
Tantos estão

Tantos nãos
               em tantos vãos
                                no vão do pequeno mundo...