segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Um pouco de Estética da Recepção e Grande Sertão: Veredas :: (I)

           

Uma obra regionalista, a priori, trata de algo localizado; seu lócus é determinado e ela possui os elementos da narrativa – personagens, trama, conflitos – normalmente atrelados ao espaço em que é realizada discursivamente a ação.
Estruturar linguisticamente um discurso literário a partir de um lugar determinado pode trazer certa complexidade. Isto porque, embora não tenha a obrigação de ser uma fotografia e registrar todos os aspectos do mundo sensível, uma representação que foca determinado local necessita de uma carga de verossimilhança para que a obra não fique artificial. É necessário encontrar nessa mímese os elementos que justificam a obra ser caracterizada como regionalista.
            Contudo, a dificuldade que pode surgir em uma obra localizada pode ser controlada se a representação conseguir transmitir a essência do local, mesmo que aspectos pontuais, como a linguagem corrente e suas variantes, não estejam presentes. Tal fato ocorre, por exemplo, com o escritor Hugo de Carvalho Ramos[1], que em seus contos consegue absorver a alma do lócus o qual representa, a partir da representação de um lugar determinado através de uma linguagem formal sem, no entanto, prejudicar a sua literatura. Outro modo de evitar dificuldades diz respeito à estruturação de uma obra regionalista cuja mímese capta, através de uma aguda imagética, a essência do local e do ambiente, e apresenta a linguagem característica do local no discurso literário ao qual se propõe. Pensando nessas duas formas, não é difícil perceber em qual desses modos o romance de Guimarães Rosa se encaixa.
Grande Sertão: Veredas é uma obra peculiar que apresenta como cenário o sertão de um modo universalizado. O local presente na narrativa de Riobaldo é transcendido para refletir as características do homem universal. Além de possuir um enredo bastante peculiar, dotado de uma trama vívida e de conflitos que representam o âmago dos relacionamentos humanos, a língua portuguesa, afinada com a poética rosiana, aparece altamente potencializada na obra de Guimarães Rosa, causando um estranhamento ao leitor que não tem conhecimento do modus operandi desse tipo de escrita.
O sertão, singularmente exposto em todo o seu paradoxal lirismo e brutalidade, por conta da linguagem e da imagética ali manifestada, compõe um cenário bruto e bucólico, no qual se desenrola uma narrativa de tom lírico e épico que exprime o ethos ambíguo do homem. O fato é que Grande Sertão: Veredas possui latente em si características que mescladas não raro causam estranheza àqueles que tomam contato com a obra.
Alfredo Bosi, ao caracterizar o romance de Guimarães Rosa, estabelece que Grande Sertão: Veredas é um romance de tensão transfigurada. Ou seja, nesse tipo de narrativa, o herói procura ultrapassar o conflito que o constitui existencialmente pela transmutação mítica ou metafísica da realidade[2]. O conflito, assim “resolvido”, força os limites do gênero romance e toca a poesia e a tragédia, algo que, muitas vezes, os leitores não estão acostumados a ver. O interessante dessa dificuldade, que engloba tanto essa transmutação mítica ou metafísica do mundo sensível quanto a poética de Rosa e suas características lexicais, é que ela, em si, diz respeito a algo positivo; porém, tal fato só será assimilado posteriormente.
             Ao fazer uso de uma linguagem viva e prenhe de significados, Guimarães Rosa consegue impactar a recepção do leitor, fazendo com que haja um estranhamento que de nenhum modo é visto como algo negativo. O estranhamento que vai ao encontro do leitor nasce a partir dos paradigmas da poética rosiana; é uma condição e característica desta. Os recursos utilizados na construção do texto são os elementos responsáveis por esse efeito que pega de surpresa o leitor que não conhece o modus operandis da linguagem ali utilizada. O fato é que o leitor não acostumado com esse tipo de escrita é levado a conhecer um modo diferente de concepção da linguagem, por isso é difícil no primeiro momento apreender o que está sendo exposto na narração.
Singular, Grande Sertão: Veredas é uma obra que causa em nós, indubitavelmente, uma sensação de desconforto, porque mexe com nosso modo de perceber o mundo. O novo tem o poder de causar em nós um certo espanto[3]; espanto este que advém de nossa ignorância e de nosso desconhecimento. Contudo, à medida que a narração de Riobaldo avança e que a nossa leitura se dá, o desconhecimento que nos leva a reavaliar a nossa percepção vai dando lugar ao desvelamento. Assim, o que era até então pleno desconhecimento de nomes, lugares, fatos e personagens dá lugar a possibilidades de compreensão, visto que, a partir do preenchimento de lacunas, conseguimos, pouco a pouco, elaborar formas de entendimento sobre o que está sendo narrado.
É interessante observar que as obras modernas não mostram o seu significado de forma pura e transparente; até porque esse significado, dessa forma, não existe. Na verdade, pensar em único significado é errôneo, porque as obras, essencialmente, nos oferecem sempre significados. E para que eles sejam possíveis, para que possam ser concretizados e vislumbrados, é necessário que o leitor interaja com a obra a qual se propõe a conhecer.
Em Fundamentos da Estética do Efeito, Karl Erik Schollhammer[4] diz que o texto literário se realiza na “convergência do texto e da imaginação”. O objeto estético, nessa perspectiva, é nada mais do que uma construção dotada de dinamismo e realizada por uma lúdica joint-venture entre texto e leitor. O texto literário é caracterizado por uma incompletude e a literatura se dá de fato a partir da leitura. Nesse sentido, o texto instrui e o leitor constrói. E é bem isso o que ocorre com Grande Sertão: Veredas à medida que a narração vai sendo conduzida. Em um primeiro momento, a sucessão de acontecimentos, de nomes de lugares, de personagens e de conflitos, dá-nos a sensação de total desconhecimento. Além disso, há muitas passagens em que o entendimento se dá por conta da objetividade, no entanto, logo a seguir, você tem a incerteza sobre o que foi “conhecido” visto que em um momento de subjetividade e de reflexão a personagem, Riobaldo no caso, ou diz que aquilo não tem fundamento ou muda de assunto, como se o que fora dito não tivesse tanta importância. Contudo, é com as idas e vindas, com o grande número de fatos expostos e com o desenvolvimento do discurso do Tatarana que o leitor vai conseguindo estruturar seu entendimento, juntando as informações umas às outras até conseguir elaborar uma compreensão da obra que não é, de forma alguma, imutável.  Para essa compreensão ocorrer, é necessário que o leitor entre em contato com a obra, reconheça-a e vá completando-a a partir de conexões que ele estabelece entre um vazio e outro. E é a esse processo que o leitor é convidado a participar em Grande Sertão: Veredas para concretizar seu entendimento sobre a obra. Ao estabelecer contato com o romance, tem-se o desconhecimento, a dúvida e a incerteza; pois a narração que ali está não possui a finalidade de comunicar uma verdade dotada de um sentido único e absoluto. Na verdade, é bem o contrário; pois é o leitor, com o seu modo de perceber, com o seu modo de conceber a realidade, quem irá construir as significações da obra. É com o fluir da leitura que o interlocutor começa a reconhecer que algumas passagens se ligam a outras, que determinadas personagens têm certas características e importância, que certos lugares têm determinados significados.
Em A interação do texto com o leitor,[5] Wolfgang Iser diz que o leitor vem com conhecimento textual para preencher os vazios e sair em outro ponto no que tange à significação de sua leitura, e é esse o movimento dinâmico entre texto e leitor que ocorre em Grande Sertão: Veredas enquanto o entendimento vai sendo construído sobre o livro. É com a concretização do texto através da leitura que o leitor entenderá melhor quem é aquele compadre Quelemém que consola Riobaldo e que tão bem sabe falar dos espíritos descarnados. É avançando em sua leitura que o leitor terá percepção sobre quem é o Hermógenes e por que sua personagem está tão ligada à figura do Diabo. Compreenderá por que Diadorim deseja tanto vingar Joca Ramiro e entenderá, a seu modo, o sentimento que unia Reinaldo e Riobaldo. Ou seja, é com o processo da leitura que hipóteses de significações vão sendo levantadas e que o leitor vai conseguindo construir seu entendimento. É dessa forma que as lacunas que até então diziam respeito ao entendimento do leitor começam a ser preenchidas, dando lugar a significados e interpretações.
Em O Ato da Leitura[6], Wolfgang Iser diz que a modernidade se manifesta, sobretudo, como uma negação daquilo que era essencial para a arte clássica. Assim, a harmonia, a conciliação, a superação dos opostos, a contemplação da plenitude dão lugar a outros modos de fazer e perceber a arte. Diante de uma arte nova, que prima pela invenção, pela universalidade e por um novo modelo estético de construção, é natural que o leitor se veja sem respostas a respeito das significações do texto. O interessante, nessa perspectiva, é saber que as significações que faltam ao texto estão presentes no leitor.
O que temos em relação à arte e seu significado é uma multiplicidade de interpretações. A respeito dela não podemos afirmar nada de absoluto, pois a arte nunca dá margem a uma única vereda. E o que acontece no início de Grande Sertão: Veredas, quanto à recepção do leitor, é que aquele que faceia a obra sente a incerteza de não saber se está apreendendo algo, pois a dúvida, de certa forma, é o que rege o romance. Há uma sucessão de acontecimentos envolvendo inúmeros personagens, inúmeras reflexões; histórias, pequenas parábolas, são contadas, mas a sensação que se tem é de que algo importante está escapando da compreensão. Certos fatos são entendidos, por conta da objetividade presente no relato, contudo, logo mais adiante, eis que a subjetividade surge projetando ao mesmo tempo luz e sombra ao discurso. É factual que em um primeiro momento de recepção a sensação de andar por veredas desconhecidas esteja presente. Todavia, mais certo do que isso, é saber que aos poucos o entendimento do que está colocado pelo narrador vai se dando à medida que a leitura ocorre. Os pontos de indeterminação que até então eram inúmeros começam a ser preenchidos e a obra começa a fazer sentido; pois o leitor passa, enfim, a concretizá-la.
Wolgang Iser[7] diz que a obra literária mais eficiente é aquela que força o leitor a uma nova consciência crítica de seus códigos e expectativas habituais. E é exatamente a esse tipo de experiência que a obra de Guimarães Rosa nos convida. Sua estrutura complexa interroga e transforma as nossas crenças com as quais a abordamos, desconfirmando nossos velhos hábitos de percepção, nos forçando a reconhecê-los como eles realmente são. Como diz o teórico da Estética da Recepção, em lugar de simplesmente reforçar as percepções antigas que temos, a obra literária, quando valiosa, violenta e transgride os modos paradigmáticos que temos de ver as coisas e com isso nos mostra novos modos de conceber o mundo, apresentando-nos novos códigos de entendimento.
Valiosa, violenta, transgressora, Grande Sertão: Veredas é, como salienta Alfredo Bosi, um desafio à narração convencional, por isso, para compreendê-la, é necessário repensar as nossas formas de compreensão e nos abrir de uma forma mais plena para a sua recepção. Para fruí-la, é necessário aceitar o convite que nos é feito em suas primeiras linhas. É necessário encarar as ambiguidades e nos deleitar com a fragmentação, com o caos que emerge do discurso que ali está posto. Fica uma dica: só nos desprendendo das nossas pré-noções e preconceitos é que podemos passar conhecer a beleza e a vida presente nas veredas da literatura rosiana e de outros tantos autores ditos modernos – que tanta empáfia causa a leitores impacientes.





[1] RAMOS, Hugo de Carvalho. Tropas e Boiadas (contos). Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1917.
[2] BOSI (1994), p. 392.
[3] Fala-se em espanto nesse ponto pensando na pontuação de Alfredo Bosi, quando este fala do “aparecimento desta obra espantosa que é Grande Sertão: Veredas”.  BOSI (1994), p. 429.
[4] SCHOLLHAMMER, Karl Erich. Fundamentos da estética do efeito: uma leitura. In: João Cezar de Castro Rocha. (Org.). Teoria da Ficção - indagações à obra de Wolfgang Iser. 1 ed. Rio de Janeiro: EdUerj, 1999, v. 1, p. 117-130. 
[5] ISER, Wolfgang. “A interação do texto com o leitor”. In: LIMA, Luiz C. (org.) A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
[6] ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo: Ed. 34, 1996, p.9.
[7] Ibidem, p. 55. 



Um comentário:

  1. Fragmentos de reflexões feitas na época do Mestrado...
    Marta Costa e a Estética da Recepção :: grandes aulas na UFPR.

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