sábado, 6 de agosto de 2011

Tolerância e Entendimento



Em meados do século XVI, o grande filósofo inglês John Locke escreveu uma carta sobre a tolerância. Seu contexto histórico era outro, sua realidade era diferente da nossa, o Zeitgeist daquele instante tinha características bem distintas do momento que vivemos hoje, mas uma coisa que ali estava presente ainda se mantém nos nossos dias: a natureza humana que, mesmo com a evolução de alguns bons anos, mantém certos caracteres, de certo modo, impassíveis ao longo do tempo.

Nesse ínterim, desde que a genialidade de Locke e de tantas outras figuras trouxe à tona belas e importantes reflexões, é inegável que a humanidade passou por mudanças. Foram transformações em diversos âmbitos. Mudanças culturais, mudanças econômicas, mudanças científicas que transformaram de diversas formas a vida do ser humano – para o bem de uns, para o mal de outros, poderiam dizer. Entretanto, como fora salientado, mesmo com tantos reveses e tantos acontecimentos, ainda divisamos, tal como outrora, certos comportamentos rijos.

Resgatando o tema da tolerância exposto por Locke, acredito que falar sobre essa questão, seja trazendo o contexto do século XVI, seja pensando nas mazelas que ainda vemos na nossa sociedade, é algo sempre atual e pertinente, até porque, ao que parece, a humanidade parece precisar ser recorrentemente relembrada sobre o que é o respeito às diferenças, lembrada acerca desse ente fundamental para a boa convivência em qualquer lugar do globo.

Em Carta acerca da Tolerância, Locke nos mostra uma questão extremamente importante e que, infelizmente, é pouco trabalhada: ninguém impõe a tolerância. O filósofo inglês fala do papel do magistrado e da impossibilidade deste impor através de decretos e lei a aceitação de determinados temas. Preso de certo modo a uma questão bastante importante da sua época – a religião –, o filósofo chama atenção para o fato de que é necessário respeitar as crenças dos outros sem forçar ninguém a partilhar nada sem sua vontade.

A questão fundamental é que pensar em tolerância é trazer ao cerne das reflexões o esclarecimento. E o esclarecimento não é algo que se imputa a alguém através da força ou da lei. A tolerância nasce do entendimento. Ela é um processo racional que envolve, se assim posso dizer, a alteridade. É um processo de se colocar no lugar do outro e entendê-lo. E tal processo não pode advir da imposição.

Em uma passagem que serve bastante para ilustrar o que estou pensando, Locke diz “confisque os bens dos homens, aprisione e torture o seu corpo: tais castigos serão em vão, se se esperar que eles façam mudar seus julgamentos internos acerca das coisas”.  O fato é que a tolerância, o respeito aos outros seres e o esclarecimento não se apresentam de modo algum quando há a presença da força e da irracionalidade. Para existir o respeito, é necessária uma boa dose de esclarecimento. E talvez seja isso que esteja faltando às pessoas quando elas discriminam, humilham, mentem, destratam e ferem outros seres. O que é o bullying nas escolas e em outros tantos recintos e ambientes senão a falta de respeito? O que é o preconceito senão a falta de tolerância àquilo que é diferente? O que é a intolerância religiosa, cultural, pessoal, sexual senão a falta de coragem de se colocar na posição do outro e entender que há, no vasto mundo, outros pontos de vista além do nosso?

As limitações que temos nos impedem de respeitar os outros seres humanos. A ignorância pura e simples nos prende a pequenos mundos egoístas e insensíveis, nos quais muitas vezes vivemos, achando que somos maiores e superiores à grande massa de transeuntes que pensam e sentem de modo diferente de nós mesmos.

Os nossos pré-julgamentos, nossas opiniões infundadas e nossa falta de saber não nos permitem ver o lado do outro – consequentemente, respeitar ideias, outros modos de ver a vida ou distintas formas de lidar com as coisas se torna, para nós, algo impensável e inconcebível. Por toda essa falta de esclarecimento da parte de muitos, por toda essa pequenez e por muito outros aspectos que nos transformam em seres exclusivistas e fechados diante do mundo múltiplo que temos diante de nós, acredito que a falta de esclarecimento é o pior mal que existe em nosso globo.

Voltando a Locke e a suas reflexões, nessa mesma carta vemos que o filósofo inglês chama atenção para o fato de que o esclarecimento, de modo algum, pode advir do sofrimento corpóreo. Indo um pouco mais além, acho interessante pensar (ainda que muito superficialmente) na questão do movimento Iluminista, que era designado pela palavra Aufklärung, que em alemão quer dizer esclarecimento.

O movimento iluminista tinha como postulado a ideia de que era necessário que o homem buscasse conhecer. Era necessário o movimento de sair de si mesmo para conhecer o mundo e as coisas, usando a sua própria razão – e não se sujeitando àquilo que os outros impunham. Pensando sub-repticiamente nessas ideias, creio que, para acender certas luzes nos dias de hoje e ver com maior nitidez as coisas que estão diante de nós, precisamos sair de nossos lugares, abandonar de vez nossas rotas zonas de conforto, fazer certos movimentos e buscar transcender nosso mundo para além de nós mesmos. Uma espécie de epifania ou a tal “iluminação” dos iluministas é algo de que precisamos para crescer.

O fato é que, se quisermos pessoas mais tolerantes, não adianta forçarmos, criarmos leis, criarmos punições. Para termos pessoas mais tolerantes, precisamos de pessoas mais esclarecidas. Talvez, seja necessário desenterrar os princípios dessa Aufklärung e chamar atenção das pessoas de algum modo.

Não basta, nesse sentido, jogar a responsabilidade apenas nos ombros de nossos pais, nossos professores, nossos políticos, nossos ditos amigos ou inimigos. Independente de formação, de classe social, de crença, de valores, todos nós precisamos de mais conhecimento, de mais entendimento (latu sensu). E mais importante: precisamos que todas essas ideias passem do mundo teórico à práxis.

Enquanto caminho para o final dessa reflexão, fico pensando no paradoxo que envolve a questão da intolerância: ao mesmo tempo em que o remédio parece ser tão simples, o tratamento é tão difícil de ser posto em prática. Os motivos para tal, creio, são inúmeros. Todavia, acredito que a mudança, tão desejada por muitos, precisa partir de cada um de nós. Um exemplo é uma semente; é um ato que, depois de plantado, tem em si o potencial de crescimento e multiplicação. Um exemplo tem o poder de influência sobre o agir de uma pessoa, de duas, de uma multidão – basta que tentemos.  A grande questão é começar o quanto antes, e começar onde quer que estejamos. Os pais com seus filhos; os professores com seus alunos; os amigos com seus pares; os políticos com aqueles que neles depositaram confiança, e todos esses, novamente, em situações inversas: em nossa casa, em nosso trabalho, na rua, no trânsito, nas escolas, faculdades, empresas – em todos os nichos, o exemplo com a tolerância e o entendimento amalgamados pode arrebatar multidões.

Posso soar utópica, mas desejo que chegue logo o tempo em que manifestos, boas ideias, palavras, gestos e atitudes em prol de verdadeiras catarses tomem forma e se tornem parte de uma mudança real nas nossas vidas tão ordinárias e falhas...  Que discursos e ideias sobre o esclarecimento e a mudança sejam incorporados à vivência de todos e que o sapere aude resgatado por Kant, no Iluminismo, torne-se uma lei da consciência de cada um, para que as pessoas respeitem e entendam mais todos os outros seres. Que a intolerância seja solapada pelo saber de uma consciência coletiva mais esclarecida – e que sejamos, desde sempre, a verdadeira mudança que queremos no nosso mundo.

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